La donna del lago

Lago di Como, Itália

Dance your dance. O meu filho sempre a rir-se para mim num canto da memória. Não estou nunca longe, tão pouco estou perto. E as viagens levam-me para me encontrar, como uma camisa que se vai desabotoando lentamente até mostrar o tronco desnudo, sem farsas.

Podemos andar à procura de algo para as nossas vidas. Podemos sair de viagem à espera que esse algo venha ter connosco. No fim percebemos que só vem o que tem de vir, e quanto menos procurarmos mais encontramos, quanto mais abertos estivermos a aceitar mais recebemos. As palavras enchem-se de um silêncio precioso. 
Em viagem olho cada dia como se fosse o primeiro, e o último. E o tempo deixa de fazer sentido. 
Para quem já visitou o Lago di Como, sabe do que estou a falar. O silêncio que se vive nesta altura do ano, início de Junho, antes da chegada dos turistas, é tão avassalador que temos que nos render à essência das coisas, ao todo e ao nosso papel na comunhão com o Universo.
Escrevo-vos de coração aberto, como antes de mim tantos o fizeram nas margens deste lago. Promessas de amor, beijos ao luar,  banhos sem qualquer roupagem no lago da paixão, onde o coração e a lua aquecem a água e os sorrisos espelham as estrelas.
Os pássaros cantam o amor já o sol se escondeu há muito, num sem dormir que só a paixão conhece.
Que posso dizer do Lago di Como quando o silêncio me devora as palavras e me preenche, me faz sentir completo? “É isso aí”, como cantam cheias de amor a Simone e a Zélia Duncan e todos os pássaros do lago. É isso aí. 

La donna del lago não é um sonho meu. Uma mulher apaixonada ou de paixões que à minha frente se despiu e se uniu com as águas do lago, só as roupas deixando ao abandono na margem, à espera do corpo que cobriam, sem pressas, sem identificação. A mesma água onde eu tinha os pés descalços, de calças arregaçadas até aos joelhos, levou-a para longe, com patos e cisnes. Olhou-me antes de se despir. Tirei-lhe uma fotografia. Despiu-se como se eu não estivesse ali ou como se fôssemos amantes. E eu voltei a fotografá-la. Tudo se passou no silêncio do lago, sem mais que a troca de um aceno de cabeça à sua chegada e duas fotografias, na presença dos patos que nos olharam com curiosidade e dos peixes que se acercaram, talvez à procura de comida ou para ver quem disturbava a água. Fui-me embora sem me despedir, sem um aceno sequer. Não sei se ela me terá visto ir embora. 

Aluguei uma casa com vista sobre o lago, no alto da vila de Comacina. O acesso não é fácil para quem optar por se aventurar a pé, mas a vista vale o esforço. E o silêncio, oh o silêncio! Será talvez a experiência mais marcante desta viagem! Por vezes o silêncio é tão intenso que o som dos meus passos faz estremecer o chão e parece ribombar na calçada. Isto senti na vila de Gravedona, onde as pessoas se movem qual fantasmas e só as suas sombras parecem passar junto a nós, mesmo nas ruelas mais estreitas.
Sou chamado a entrar num alfarrabista por uma Love Story, um livro antigo que estava à minha espera, dos poucos livros em inglês que havia. Peguei no livro e dou com uma senhora ao meu lado, que me diz “molto buono , vi piacerà troppo”. Guardei o livro para o ler no avião. Posso adiantar que, entre risos e lágrimas, o li de enfiada. Enxuguei as últimas lágrimas já no comboio para Cascais, uns minutos depois de ter virado a última página, sob meia dúzia de olhares inquisitivos. Pensei na senhora que mo aconselhou, já só voz, sem rosto, sem corpo. 
Duma pequena capela perto do alfarrabista sai o som de um concerto de órgão. Lá dentro uma estátua de Nossa Senhora olha para todos cheia de piedade, com um olhar tão intenso que espero que desça do pedestal a qualquer momento para abraçar as pessoas e limpar todos os medos e dúvidas que possamos ter. Tu és vida, amor e alegria e nada do que possas fazer, pensar ou dizer pode alterar essa realidade. Agradeço estes pensamentos e, findo o concerto, saio da capela.

Na rua cruzo-me com estudantes de ontem, casais de hoje que cumprem as promessas de amor trocadas nas barcas que ainda hoje se podem ver no lago. E quem as vê ao largo pode adivinhar as palavras que se trocam, talvez até rever-se na saudade dos primeiros beijos. O amor que nos rege a todos, alheio à forma como o decidimos viver.

Ao longo dos 146 Km quadrados do Lago di Como formaram-se várias vilas. Na margem de cada vila que visito espera-me uma experiência diferente, numa variedade imensa de surpresas. A vila de Belaggio, também conhecida pela “Pérola do Lago de Como”, é a mais turística e com maior oferta de restaurantes, bares e animação. A beleza deste local chama mais alto e a chuva não intimidou os turistas. Assisti até a uma dance in the rain. A bailarina pousou para a minha câmara, entre salpicos, risos e muita dança. 
Situada no coração da vila podemos encontrar uma bonita torre, de dimensões comedidas, explorada por artistas e onde se realizam muitas exposições. Uma visita a não perder. 

Esta foi, acima de tudo, uma viagem interior. O silêncio que se vive é um convite para sossegar os pensamentos. E criar, como fazem testemunho muitas obras literárias. “I promessi sposi”, de Alessandro Manzoni, parte do programa curricular de liceu, é um dos exemplos mais acarinhados pelos italianos, fonte de inspiração para todos os jovens ainda nos seus verdes anos.
Volto a sentir o sorriso do meu filho a abraçar-me. 
A viagem ao Lago di Como chega ao fim. Para trás deixo o país das pizzas, dos gelados, de pessoas muito afáveis e acolhedoras, dos amigos que fiz e que acredito voltarei a encontrar pelo menos uma outra vez.

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